"Preciso dizer uma coisa sobre o medo. Ele é o único adversário efetivo da vida. Só o medo pode derrotá-la. é um adversário traiçoeiro, esperto... Como eu sei disso! Não tem nenhuma decência, não respeita leis nem convenções, não tem dó nem piedade. procura o nosso ponto mais fraco e o encontra com a maior facilidade. Começa pela mente, sempre. Num momento, estamos nos sentindo calmos, confiantes, contentes. Aí o medo, disfarçado sob a capa de uma ligeira dúvida, se infiltra na nossa mente como um espião. A dúvida vai ao encontro do descrédito e o descrédito tenta expulsá-la. Mas ele não passa de um soldado de infantaria com armamento deplorável. Sem maiores problemas, a dúvida consegue vencê-lo. Começamos a ficar ansiosos. A razão entra inteiramente equipada com armamentos da mais avançada tecnologia. Mas, para nossa surpresa, apesar da superioridade das suas táticas e de uma quantidade inegável de vitórias, a razão é derrotada. Nós nos sentimos enfraquecidos, hesitantes. A nossa ansiedade se transforma em pavor.
O medo, então, se concentra inteiramente no nosso corpo, que já está sabendo que algo terrível vai acontecer. (...) Cada parte de nós, a seu modo, entra em colapso. Só os nossos olhos continuam funcionando bem. Eles sempre dão a devida atenção ao medo.
Bem depressa, tomamos decisões precipitadas. Abandonamos os nossos últimos aliadas: a esperança e a confiança. e pronto! Nós mesmos nos derrotamos. O medo, que não passa de uma impressão, acabou de nos vencer.
É uma questão difícil de expressar com palavras. Pois o medo, o medo de verdade, aquele que abala até mesmo os nossos alicerces, aquele que sentimos quando nos vemos cara a cara com o nosso fim mortal, se instala na nossa memória como uma gangrena: trata de estragar tudo, até mesmo as palavras que usamos para falar dele. Portante, é preciso um esforço enorme para expressá-lo. Temos de lutar bravamente para lançar a luz das palavras sobre ele. Porque, se não fizermos isso, se o nosso medo se tornar uma escuridão indescritível que evitamos a todo custo, algo que talvez até possamos esquecer, estaremos abrindo a guarda para sofrer novos ataques, já que nunca enfrentamos para valer o adversário que nos derrotou."

As aventuras de Pi, capítulo 56, página 194.

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